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terça-feira, 28 de junho de 2016

A minha recusa a voltar a conviver com o ‘dona, tem pão velho?’

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Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_

As crianças, após o jantar, viam TV. Fazia uma temperatura agradável, mas para nós, nordestinos, recém-chegados a Belo Horizonte, era frio. A campainha tocou. Atendi.
“Dona, tem pão velho?”
Voz de criança. Era a primeira vez na vida que ouvia aquilo. Demorei a processar a indagação. Espantada:
“Pra quê?”
“Pra comer!”
“Espera. Vou descer.”
O porteiro falava alterado. Eram duas crianças, a maior de uns 8 anos e a menor tendo por volta de 6 anos. Vendo-me com um saco de pão, o porteiro, imbuído da maior autoridade dos pequenos poderes: “A senhora não pode dar pão pra esse povo que pede aqui na rua! Tenho ordem do síndico pra não deixar”. Dei o calado por resposta e entreguei o saquinho com dois pães para o menino maior, e ambos saíram correndo. Encarei o porteiro: “Comunique ao síndico, que sempre que alguém pedir comida em minha casa, se eu tiver, darei!” No dia seguinte, recebi uma advertência por escrito, na qual constava a resolução dos moradores, definindo a proibição de dar esmolas na portaria para não atrair gente que “colocasse o prédio em risco”.


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  Era 1988. Rua Oscar Trompowski, no Gutierrez, bairro de classe média tida como alta. Morei lá mais de um ano, e nunca mais minha campainha foi tocada por gente pedindo comida. Depois que saí de lá, soube que deram um spray de pimenta para o porteiro afugentar pedintes!
Mudei-me para a Cidade Jardim, na zona sul de BH. Prédio de apenas três andares, dois apartamentos por andar. Sem porteiro. Na rua Conde de Linhares, onde morei de março de 1989 a junho de 2014. Lá descobri a dura peregrinação cotidiana de adultos e crianças em busca de pão velho ao anoitecer.


Rua Conde de Linhares


[Rua Conde de Linhares (a minha rua, na Cidade Jardim, BH-MG)] 


Minha filharada aprendeu a comer pão guardando o pedaço que não queria mais para o “menino do pão velho” – na verdade, uma legião deles, que durante anos tocavam a nossa campainha, tão presentes em nossas vidas que viraram dizeres pedagógicos contra o desperdício e até piadas.
Um dia, ouvi Débora, pré-adolescente, dizer: “Isso, estraga Arthur! Olho maior do que a barriga. Enche bem o prato e joga no lixo! Mamãe se mata de trabalhar, e tu jogando comida fora. Quer virar ‘menino do pão velho?’”
Eram tão onipresentes que em Minas, ao se atender a campainha e se reconhecer a voz de uma pessoa amiga, ainda se diz, rindo: “Tem pão velho, não!”


'Recipients of the Bolsa Famila Programme' Source: Bruno Spada/MDS Não sei dizer exatamente quando começou a escassear até praticamente desaparecer a legião de meninos do pão velho, mas não tenho dúvidas de que foi após o governo Lula instituir o Bolsa Família, como bem lembrava Valdete, idealizadora das Meninas de Sinhá, com quem aprendi muito.



Dona Valdete, criadora do grupo Meninas de Sinhá (Foto: Patrícia Lacerda/Meninas de Sinhá) Valdete repetia como um mantra: “Meninos na rua agora são poucos, quase nada comparando com antes de Lula: tudo na escola! Menino do pão velho? Virou coisa do passado! Milagre de Lula com o Bolsa Família! Lá em casa, a gente está comendo pão velho à tripa forra. Pudim, doce, na torta de sardinha, bolo salgado de pão com legumes... e almôndegas com pão velho, melhor não há!” Ê, Valdete, saudade! (“‘Tá Caindo Fulô...’ – Memórias de Valdete e das Meninas de Sinhá”, 22.1.2014).
É a legião de “meninos do pão velho” que o governo do interino quer resgatar no Brasil com ataques ao Bolsa Família, com discursos que até tenho vergonha de repetir, mesmo com aspas; e, agora, com a recusa de honrar o reajuste de apenas 9% concedido pela presidente Dilma Rousseff! Coisa de gente sem repertório humanitário. Indago outra vez: “Por que o Bolsa Família desperta tanto ódio de classe?” (O TEMPO, 11.6.2013). Nem preciso gastar mais meu latim, mas é ódio de classe de quem acha que o Brasil não deve ser um país cuidador de seu povo.


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 PUBLICADO EM 28.06.16
0 (DUKE)  FONTE: OTEMPO

terça-feira, 21 de junho de 2016

O que aproxima os estupros coloniais dos estupros coletivos?

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Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_

 Compartilho trechos do didático artigo de Carolina Cunha “Cultura do estupro: você sabe de que se trata?”:
“Na última semana, dois casos de estupro recolocaram esse tipo de violência na pauta. O assunto voltou com força – nas redes sociais e fora delas.
“Os crimes que ganharam as telas dos computadores e das TVs: uma adolescente de 16 anos foi violentada por um grupo (talvez mais de um grupo) de homens no Rio de Janeiro, e teve vídeos da agressão disponibilizados na internet. No Piauí, outra adolescente, de 17 anos, foi violentada por quatro menores e um homem de 18 anos.
“O que espanta, nos dois casos, é uma reação de ‘normalidade’, de ‘naturalidade’ com que os agressores trataram seus crimes. No caso da adolescente fluminense, o vídeo começou a circular nas redes sociais como se fosse um troféu – com a circulação do vídeo, centenas de denúncias começaram a chegar ao Ministério Público antes mesmo de a menina ir à polícia. O delegado responsável pelo caso do Piauí conta que os menores disseram julgar ‘normal’ o sexo do colega com a menina desacordada (...).
“O crime de estupro está previsto no artigo 213 do Código Penal Brasileiro. A lei brasileira de 2009 considera estupro qualquer ato libidinoso contra a vontade da vítima ou contra alguém que, por qualquer motivo, não pode oferecer resistência. Não importam as circunstâncias, se foi contra a vontade própria da pessoa ou ela está desacordada, é crime. Antes, o ato só era caracterizado quando havia conjunção carnal com violência ou grave ameaça” (Novelo Comunicação, 6.6.2016).




O estupro coletivo é a violência sexual perpetrada por mais de um agressor – crime usual em períodos de guerra, desde tempos imemoriais, e frequente em sociedades contemporâneas de alicerces patriarcais.
O estupro colonial, base da mestiçagem brasileira, foi praticado, como um direito divino, por portugueses contra índias e pelos senhores de escravos contra negras e índias durante o período colonial até a abolição da escravatura (Lei Áurea, 1888).


  (Nhá Chica - de aparência negra como ela era e de aparência branca, como a Igreja Católica Apostólica Romana mandou fazer para a sua beatificação) 


Então, a “cultura do estupro” descende da visão naturalizada dele até 1888 como um direito, como registrei em “A santa Nhá Chica é uma mestiça descendente do estupro colonial” do seguinte modo: “Trazidas para o Brasil na condição de trabalhadoras escravas, vítimas do estupro colonial, as africanas e suas descendentes não eram donas de seus corpos. A possibilidade de decidir sobre o próprio corpo e o exercício livre da sexualidade é uma experiência muito nova para nós, negras” – da Lei Áurea para cá (O TEMPO, 30.7.2013).
O que une o estupro colonial ao estupro coletivo é a ideologia patriarcal: o sentimento de propriedade privada, que naturaliza e banaliza o ato sexual não consentido.



Índias e negras estavam alocadas na condição de “objeto privado”, cujo “uso” era “legal”, tanto que o sexo forçado com elas nem é mencionado nas Ordenações Filipinas – ordenamento jurídico português do rei Felipe I, que data de 1603, em vigor no Brasil até 1830. O linguajar para a violência sexual da época era “estupro, rapto, aleivosia e defloramento”, quando praticados contra a mulher branca, porque “honra” era um atributo exclusivo delas!


(Fátima Oliveira e Sueli Carneiro)


Estupro é crime hediondo no Brasil – Lei 8.072, de 25 de julho de 1990. E ponto final.


 
 PUBLICADO EM 21.06.16
Do blog Memorabilia
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 FONTE: OTEMPO

terça-feira, 14 de junho de 2016

Proteção à saúde e à vida das mulheres como direito

Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_


Sempre que os serviços de saúde são atacados em nome da restrição de aportes financeiros, esquecem que nós, as mulheres, somos pouco mais da metade do povo brasileiro.
Governos de espectro conservador focam apenas o que santifica a mulher nos discursos: gerar a vida. O que acontece no percurso, abortos espontâneos ou voluntários, não conta, embora saibam que aqui as maiores vítimas são as mais despossuídas, no caso as pobres, mas entre as pobres, as jovens e as negras.
Há uma indústria do aborto às custas da ilegalidade. Há um caráter de classe do aborto no Brasil. O abortamento é um procedimento seguro em mãos habilitadas, que nos países onde é criminalizado só é acessível a quem pode pagar por ele. Logo, uma sociedade que nega a suas cidadãs o acesso ao aborto seguro é cruel.




Em 2005, publiquei pela Mazza Edições o romance “A Hora do Angelus”, que aborda “amores, abortos e abandonos nos subterrâneos da Igreja”, do qual transcreverei alguns fragmentos.


(Capela Bom Jesus dos Navegantes, onde, teria o Padre Antonio Vieira, em 1654, proferido o célebre "Sermão aos Peixes" criticando, através de metáforas, a sociedade rica de São Luís-MA) 


“Ele riu e perguntou se eu abortara alguma vez.
“‘Não, nenhuma. Também nunca precisei. E, depois, uma mulher só opta por abortar diante de necessidades especiais, como, por exemplo, quando não tem como criar o filho; como não suportar o peso da vergonha de uma gravidez sozinha diante de familiares e do seu meio social; ou quando uma gravidez é indesejada por muitos outros motivos. Tem sido assim em todas as sociedades. Hoje, há outras questões postas, como, por exemplo, inviabilidade fetal comprovada, e o ônus de deixar vir ao mundo uma criança com doenças graves e incapacitantes para a vida autônoma para as quais a sociedade e o Estado lavam as mãos’.
“‘Mas como é para um homem exigir que uma mulher aborte?’ – indaguei.
“‘O aborto para mim é um tema de autodeterminação das mulheres. Quando tive de lidar com o aborto do ponto de vista pessoal, era numa época em que provocar um aborto era quase sinônimo de morte, nem sequer havia antibióticos. Foi em 1940. Não havia ainda a penicilina. As mulheres dependiam da habilidade da parteira, muito mais do que de conhecimentos médicos (...). Ela em minha vida e o meu amor por ela são comparáveis a um acidente, já que meu plano era outro. Naquela época eu entendia que acidentes são acidentes, nada mais que acidentes, portanto devem ser tratados como tal’.


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   (O Convento de Santo Antônio, obra dos frades franciscanos. Inaugurado  em fevereiro de 1625. Em 1838 foi criado o Seminário Episcopal de Santo Antônio, que ocupou o Convento Santo Antônio.A Igreja, de Santo Antônio, ao lado do seminário, foi inaugurada em 20 de janeiro de 1867) 


“(...) Não há o pecado do aborto. Aí é que está a diferença. Nem sempre foi como hoje, na história da Igreja, a opinião sobre o aborto. Há muita literatura sobre isso. Essa opção da Igreja de lutar contra o aborto é inútil, na medida em que ela luta mesmo é para que as mulheres não tenham acesso ao aborto seguro. O problema para a Igreja não são os abortos, mas os leitos obstétricos para o aborto, pois a simples existência deles, em qualquer lugar, desmoraliza a sua posição contrária...
“(...) Essa batalha contra o aborto ela já perdeu, mas só se dará conta disso quando perder a dos leitos obstétricos para o aborto também. É preciso e é tão importante quanto a luta pelas leis sobre direito ao aborto preparar caminhos para a definição de leitos obstétricos para o aborto, ainda que indiretamente.
“Você me entende? O aborto, nos tempos atuais, assim como a gravidez, e especialmente uma gravidez indesejada, não pode mais ter esse poder de antigamente de mudar projetos e cursos de vida contra a vontade das pessoas. O poder até de destruir a vida de mulheres e de homens. Aceitar que assim seja é se portar contra o projeto civilizatório dos tempos atuais”.
Eis por que a resistência no combate às trevas hoje no Brasil deve ser feita nos Estados.


 PUBLICADO EM 14.06.16
0 FONTE: OTEMPO


 A hora do Angelus é uma história de vida amorosa que se desenrola em São Luís do Maranhão. Em A hora do Angelus eu coloquei todas as belezas que me encantam lá. E assim registrei o meu amor por esta bela ilha, cujo centro histórico é um conjunto arquitetônico que é uma réplica das vielas de Paris. 
(Santiago do Chile, 8 de setembro de 2006. Às 10:40)


09321413  RESENHA
A hora do ângelus
CLÁUDIA COLLUCCI
da Folha de S.Paulo

Mazza Ediçoes Mazza Edições | Rua Bragança 101, Pompeia - 30280-410, Belo Horizonte-MG/Brasil | Fone/Fax: 31 3481-0591

terça-feira, 7 de junho de 2016

A resistência no combate às trevas deve ser feita nos Estados

Fátima Oliveira
Médica - fatimaoliveira@ig.com.br @oliveirafatima_


A cidadania das brasileiras ainda é frágil, sobretudo quanto ao direito de decidir sobre o próprio corpo. Basta olhar de relance o desmonte promovido pelo governo interino sobre os diretos da mulher, sem falar na ausência delas no primeiro escalão do governo; no rebaixamento do status de ministério da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres; e, conforme a Apeoesp, a “bancada evangélica quer incluir o criacionismo e excluir religiões de matriz africana do currículo escolar”. Pura treva!



 É tão público, misógino e desavergonhado que endosso as palavras de Lola: “Todos nós reclamávamos muito da Dilma, que certamente não estava fazendo o governo de esquerda que esperávamos (lembrando que uma presidente não governa sozinha; precisa, inclusive, dialogar com o Congresso mais retrógrado do Brasil desde o início dos anos 60). E só ter uma mulher no poder não fez com que o Brasil avançasse o necessário no combate à violência contra as mulheres nem na maior representatividade feminina... Vendo este início de governo Temer, já dá para dizer: nós éramos felizes e não sabíamos” (“Quero ser mulher sem temer”, 6.6.2016).




  Como disse Nana Soares, “o interino mostrou que sempre pode piorar”, indicando a ex-deputada Fátima Pelaes para chefiar a Secretaria de Políticas para as Mulheres, pois ela “se opõe radicalmente à descriminalização ou legalização do aborto”. Em qualquer cargo público, as posições de Fátima seriam problemáticas. Não porque ela não possa ter uma religião, mas porque declara abertamente exercer suas funções públicas em um Estado laico de acordo com seus preceitos religiosos. (“A possível nomeação de Fátima Pelaes é mais um baque para o movimento feminista”, 27.5.2016).


FTIMA PELAES   (Fátima Pelaes)


Em 1º de junho passado, ela divulgou nota na qual diz que “defende o apoio do Estado a mulheres que optarem por interromper a gravidez nos casos permitidos por lei” e que seu “posicionamento sobre a descriminalização do aborto não vai afetar o debate de qualquer questão à frente da Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres”.


  


Nada é bem assim. Nossa história com o nascituro do ex-ministro Alexandre Padilha é exemplar e dolorosa (MP 557, em 2012); e sabemos que, sem cuidar do aborto inseguro, combater a morte materna é miragem. Aliás, o fundamentalismo santifica a morte materna e sataniza as mulheres!



 Os corpos femininos constituem o alicerce da agenda fundamentalista. Resistir às trevas é preciso! Se no campo nacional só há retrocessos no horizonte e impossibilidade de avançar, temos de garantir às mulheres onde vivem, Estados e municípios, direitos conquistados e equipamentos públicos necessários para tanto no tocante aos direitos sexuais quanto aos direitos reprodutivos!
Ouso garatujar algumas trilhas que necessitam de aportes e adequações locais, das quais já dei ciência ao governador do Maranhão, onde vivo hoje, Flávio Dino.


  (Governador Flávio Dino ao lado da Secretária de Estado da Mulher Laurinda Maria de Carvalho Pinto e da Adjunta,  Susan Lucena)


  No cenário nacional de trevas, há questões colocadas para o governo Flávio Dino no campo da saúde reprodutiva/direitos reprodutivos:
1. Tornar de excelência e divulgar bem os serviços de atenção à violência sexual;
2. Manter, melhorar e ampliar serviços de atenção ao aborto previsto em lei;
3. Implementar a atenção ao abortamento inseguro: não permitir morte materna por aborto;
4. É de pouca serventia uma Secretaria da Mulher que não se posiciona sobre o aborto como uma questão de saúde pública; e
5. A atenção ao aborto previsto em lei e a atenção ao abortamento inseguro integram o respeito à cidadania feminina na agenda dos direitos humanos.
A luta continua!

AS  (DUKE)
 PUBLICADO EM 07.06.16
 FONTE: OTEMPO

NORMAS TÉCNICAS DO MINISTÉRIO DA SAÚDE