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segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Fátima Oliveira, por Fernanda Pompeu


(perfil escrito em 2005)
[Antologia Brasileiras Guerreiras da Paz] 
"Temos trabalho e prazer para muitas gerações."


Município de Graça Aranha, Maranhão, 1961. A menina de 8 anos observa uma cena quase diária e, não obstante, sempre angustiante. Da janela, ela assiste à procissão a caminho do cemitério. O caixãozinho azul é o abre-alas dos adultos com sombrinhas sob o sol inclemente. A avó da menina tenta confortá-la: “É enterro de anjinho. Ele vai direto para o céu”. A menina não contém o choro, está assustada com tantas mortes. Nesta mesma semana, a mãe de uma coleginha morreu. De parto. 

Talvez obedecendo a lógica do “aquilo deu nisso”, a menina cresceu e tornou-se médica para lutar contra mortes evitáveis de crianças e de gestantes. A doutora Fátima Oliveira nasceu na diminuta Graça Aranha, em 1953. Filha de mãe negra e de pai branco, ela conta que assumiu a negritude durante o curso de Medicina. “Apesar de estarmos no Maranhão, éramos três negros em uma turma de sessenta alunos.”

Até ela virar a defensora dos direitos da mulher, da saúde e da igualdade racial, viandou por muitas veredas. Seu primeiro trabalho social ocorreu ainda na adolescência. Ela integrou a Juventude Operária Católica (JOC), militando na Pastoral da Mulher Marginalizada. “A gente trabalhava com as prostitutas, agendando consultas médicas, arranjando escola para os seus filhos, recolhendo alimentos e roupas. Tentávamos dirimir o preconceito contra elas.” 


 (escultura de Maria Firmina dos Reis, do escultor maranhense Flory Gama)


Então chegou 1975 – o Ano Internacional da Mulher e inaugurador da Década dos Direitos da Mulher. Como parte das comemorações, foi erguido o busto de Maria Firmina dos Reis (1825-1917) na praça central da capital São Luís. Maria Firmina foi a primeira romancista negra do país. Naquele dia, Fátima teve um insight. Percebeu que sua vida seria uma junção entre a ciência, o feminismo e a luta anti-racista.

Para dar conta da tríplice escolha, ela trabalha com apetite gordo. Morando em Belo Horizonte desde 1988, dá plantão no Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais: “Adoro minha profissão”. Participa de congressos, simpósios, encontros no Brasil e no exterior. “Aproveito todas as oportunidades.” Redige uma coluna semanal para o jornal O Tempo. Adora questões polêmicas acerca das mulheres, do meio ambiente, da política nacional. “Disparo e-mails para meio mundo.” É secretaria executiva da Rede Feminista de Saúde: “Com todo o orgulho”.

Fundada em 1991, a Rede Feminista de Saúde reúne mais de duzentas filiadas. Congrega pesquisadoras de saúde da mulher, ativistas, comunicadoras. Sua missão consiste no fortalecimento do movimento de mulheres; no reconhecimento dos direitos sexuais e reprodutivos como direitos humanos; no combate às discriminações de gênero e de raça. Também é pela legalização do aborto: “O único direito que nós, as brasileiras, ainda não conquistamos”.

Quando, em 2002, Fátima foi eleita secretária executiva da Rede Feminista, tornando-se a primeira negra no cargo, ela já tinha reconhecimento dentro da ciência e dos movimentos negro e de mulheres. Havia participado do Grupo de Trabalho para a elaboração do Programa de Anemia Falciforme do Ministério da Saúde. O assunto é de grande relevância para a população negra, pois os negros têm maior predisposição genética para esse tipo de anemia. Do trabalho do Grupo, resultou a obrigatoriedade de verificar a incidência da doença em todos os recém-nascidos e agilizar seu tratamento.

O Brasil da profunda desigualdade racial nunca teve políticas públicas de saúde com especificidade étnico-racial. Preencher essa lacuna é uma das lutas do movimento negro, sendo que Fátima Oliveira é um nome obrigatório nessa arena. Ao instruir alunos residentes no Hospital das Clínicas, ela alerta: “Toda vez que um negro entrar aqui, vocês devem medir a pressão”. A informação tem razões: pressão alta é comum entre as pessoas negras e esse dado raramente é estudado nas faculdades de Medicina.




Ela também estica os dedos no teclado do computador. Fátima é autora de vários títulos nas áreas de bioética, biossegurança, transgênicos. O primeiro é um tema caro para ela. “Eu encaro a bioética como um campo dos Direitos Humanos.” É uma oportunidade de popularizar as descobertas científicas e humanizar o atendimento médico. “Foi-se o tempo em que os médicos falavam e os pacientes não perguntavam nada.” Em 2005, ela se permitiu mais uma ousadia. Publicou o romance A Hora do Angelus. Para não perder o costume, o enredo dá alfinetadas fundas na Igreja Católica, contrária a vários dos direitos reprodutivos e sexuais defendidos por Fátima.

  No meio de sua frenética atividade, ela ainda arranja tempo para conviver com seus cinco filhos e dois netos. “Adoro a casa cheia. Venho de uma família que não cria cachorro nem gato. Cria gente.” Talvez por isso, ela seja capaz de ler e escrever ao mesmo tempo que um filho ouve música, outra filha conta uma história e os netos a chamam para brincar. Assim é a cidadã de Graça Aranha. Alguém que gosta de dizer: “Tive os amantes, os amigos e os filhos que quis”. Se Fátima Oliveira tivesse de escolher um único slogan entre todos, provavelmente seria: “Salve a Vida”.


 (Fernanda Pompeu)
 FONTE: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10153212089859862

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